Por: Rogério Mansera
Naquela tarde estava o Comandante sentado num tronco de árvore junto à filha caçula, cachimbo na boca e pernas cruzadas. Estavam os dois encostados junto ao muro da casa. Vigiavam as pinturas, que cuidadosamente haviam fixado na parede interna do muro. O pai cuidava do movimento da venda erigida no quintal, e do ir e vir da vizinhança. A menina apreensiva roía as unhas.
Contrariada, a garotinha loirinha, bochechuda e sardenta batia os pés. Bonachão, folgava o Comandante com os negrinhos que empregava, fazendo piada para serenar a filha irrequieta… Foi quando passou o Almeida.
Na mesma hora a menininha saiu correndo atabalhoada. Sumiu nos fundos do comércio. O Comandante levantou de braços abertos, afetuoso e franco: – Folgo em vê-lo querido amigo! – Disse, andando em direção do Almeida… Estavam ainda em mesuras quando a menina ressurgiu no portão da casa. Ela o deixara entreaberto, a fim de espiar os movimentos do pai, cismada. Percebendo sua presença, o Comandante encaminhou o Almeida rapidamente para o interior da Venda. Este estava com um sorriso estatelado, nitidamente honrado com tão ilustre amizade.
Não só ele, como boa parte dos moradores das cercanias, sentiam profunda admiração pelo Comandante. Julgavam notória sua sabedoria. Galanteador incorrigível; agradava a gregos e troianos com sua conversa fácil e seus maneirismos.
Não somente por isto era admirado, a sua famosa generosidade também o precedia. Chegou a dilapidar sua herança com a caridade que dispensava aos que sofriam… Acabou virando uma espécie de vereador sem mandato. O Comandante gozava a vaidade desta importância e admiração. Por isso passava a maior parte do tempo à entrada da Venda, distribuindo sorrisos e acenos; sempre vestido de gandola camuflada e boné da marinha, fanfarronando, enquanto sua mulher suava atrás do balcão…
Naquela manhã, já no café, a pequenina exibia profunda tristeza. Os três irmãos, mais velhos, arrumavam-se em algazarra para a Escola, já alimentados, e ela emburrada recusando-se a comer. A mãe, sem paciência, bradou: – Não quer comer, não come! Vá brincar e vê se não me atrapalha! – enquanto corria de um lado para o outro… Organizava as mochilas das crianças, passava manteiga nas bisnagas à espera dos negrinhos e ajeitava, quase ao mesmo tempo, os preparativos para abrir a Venda. O Comandante, impassível, lia o jornal do dia sorvendo um canecão de café com leite e uma baguete. Em sua despreocupação, viu a menina levantar da mesa enfezada, batendo a caneca violentamente no tampo. A mãe gritou da cozinha:
– Veja só os modos de tua filha! Eu já falei que passa da hora de você ter com ela uma conversa!… Ela nunca me escuta… – O Comandante, ouvidos moucos, respondeu: – Deixe a menina!… – E nem bem abria a boca já um tumulto instalara-se no quintal. Ela e os irmãos brigavam. Correram, o Comandante e a mulher no mesmo abalo, e chegaram a tempo de ver a menina furiosa, pendurada, agarrada aos cabelos do mais velho – que caiu sobre ela. A mãe foi prontamente acudir o menino enquanto o pai brigava para afastar a outra que se debatia com ódio nos olhos…
Conseguindo se desvencilhar do pai a garota partiu em disparada pelo corredor que dava aos fundos da casa. O Comandante nada fez além de ordenar a partida dos meninos. A mãe saiu resmungando: – Eu avisei! – E sumiu para a cozinha…
Foram cada um para o seu lado, O Comandante julgou certo abrir a venda e resolver tudo com calma, como era do seu feitio…
Portas abertas ele convocou os negrinhos para o café. Enquanto comiam, distribuía as tarefas em tom professoral… Alguns minutos depois estava tudo funcionando segundo seu agrado. Os primeiros fregueses entravam, e ele, como sempre, esbanjando seus gracejos. Num intervalo chamou o Juvenal, o mais antigo funcionário:
– Ô Juvenal, vai lá dentro e diga a minha mulher para assumir o caixa! Preciso dar uma saída e já volto. Mas vá agora, moleque! – Ainda houve tempo para uma vaidade: Olhou-se no espelho e abotoou a japona, antes de sair apressado…
Uma meia hora depois retorna o Comandante, uma sacola numa das mãos. Foi direto ao balcão, pegou tesoura, um tubo de cola e uma resma de folhas em branco. Pegou também a caixa em que vieram os ovos: faria as molduras. Ignorava solenemente os protestos da esposa, cobrando providências para a menina. Tudo em mãos foi para a sala sem dar um pio.
Naquele instante jazia sentada a menininha agarrada à sua boneca de trapos, dentro do canil. Ainda choramingava rancorosa, nem se importava com as dores que lhe causou a briga. Não via a hora de o irmão retornar… Queria fazê-lo engolir os insultos. Ecoavam em sua cabeça as palavras proferidas por ele. Também remoia o ciúme pela atitude da mãe que o socorreu em primeiro lugar. Sentia-se coberta de razão. Queria apenas ir à escola, como os irmãos. Não conseguia entender o porquê estudavam eles e ela não. O irmão maior não deveria tê-la dito:
– Você só não vai conosco porque é bastarda. Não é de nossa família. – Lembrava isto com raiva e foi por isto que voou furiosa em seu pescoço.
Foi quando ouviu, vindo da casa, o chamado do pai. Andava vagarosamente em sinal de pirraça. Chegou à sala com a cabeça erguida e punhos cerrados. Postou-se em frente ao pai e aguardou. Ele, sentado no sofá, um copo de refrigerante nas mãos, dirigiu-lhe um olhar terno; depositou o copo na mesinha, pegou a sacola e deu início:
– Olha o que eu trouxe para você! – Falou enquanto sacava alguns potes com várias cores de tinta guache e um pincel. A menina arregalou os olhos na hora, desarmando os punhos. O Comandante prosseguiu:
– Eu estive pensando em vender quadros, o que você acha? Indagou enquanto apanhava as molduras, as folhas coladas no recorte retangular de papelão. A menina não pestanejou e agarrou como pôde, com semblante vivo, os apetrechos. O pai emendou:
– Já que você ainda é muito pequena para ir para escola, vai trabalhar. Pinta lá no quintal para não fazer sujeira aqui dentro. E quando estiver pronto você me chama. – Mal disse isto o Comandante e sumiu-se a menina em rumo do quintal…